28 março 2010

Das lágrimas caem-me os olhos.

Das lágrimas caem-me os olhos. Já não vejo, mas sei que há peças espalhadas por toda a parte, por todo o meu mundo. Talvez uma bomba, uma intempérie, uma tempestade os assulou. Eles, os dispersos por toda a parte, uns jazem com um sorriso ensanguentado pelo rasgo nos lábios aparentemente de tanta felicidade. Os outros boiam em tinas de líquido lacrimal. Há pedaços, há partes por toda a parte de mim.  Há fumo, há neblina, há uma, há duas mãos que seguem à minha frente e com elas, ainda mais há frente um desejo, qualquer, que ainda não percebi qual é. Talvez o de encontrar uma a uma, talvez o de sair daqui, seja aqui onde for, para fora. Fora e dentro, fora e dentro, o meu ar não faz mais nada agora que não seja respirar. Fora e dentro. Fora e dentro. Há dentro de mim uma dor esgazeada que me sai do coração e chega às mãos. Sai das mãos e chega aos olhos, que aos molhos, me caem das lágrimas.

Imagem: "Femme qui pleure" de Pablo Picasso

27 março 2010

O meu amor está preso

O meu amor está preso.
O meu amor vive entre o silêncio dos que não vêm. Vós que não vêm... Está preso.
O meu amor fez das grades a sua familia... e são tantas... são demais... as grades, a família... Está preso.
O meu amor vê a luz das fracas estrelas em traços ditos de amor... apreendidos como amor... Está preso.
O meu amor chora ao deitar. A sua prisão não tem fundo. É um poço... Está preso.
O meu amor aquece-se às vezes, com o sol que lhe empresto, rouba-lhes o pano e cobre-me de breu... Está preso.
O meu amor fecha-se e manda fora a chave. De noite a procuro, de madrugada lha ofereço... todos os dias... Está preso.
Outravez... O meu amor adormeceu. Dei-lhe tudo... até este espelho e hoje a ele pergunto... afinal que homem sou eu?

Imagem: "Bird Cage" Painting by Hiroko Sakai

22 março 2010

Hoje estou revoltado com os químcos.

De tanto conhecimento que se julga ter, ainda não foi possível purificar e isolar a maldade num tubo de ensaio. Aí, pura, dá-la a provar em gota aos homens para que estes a sentissem e podessem rejeitá-la imediatamente sempre que esta se aproxima dos seus corações.

15 março 2010

A casa dos bicos

A minha casa tem bicos. Do chão crescem bicos como flores à volta deste carreiro. Das paredes aproximam-se de mim bicos, como bolores. O tecto fá-los descer silenciosamente pelo espaço que existe até à minha cabeça. A minha casa é a casa dos bicos.

Todos os bicos picam e os seus arranhões têm um ardor metálico e cortante na minha carne. Estou ferido. Estou ferido há anos, a minha imagem é uma imagem ténue e grotesca, debilitada do que já fui quando todos estes bicos não me picavam. Faço a minha vida no pequeno corredor onde os bicos não chegam e tornei-me exímio em não lhes tocar. Hoje quase que tenho uma vida normal na minha casa, na casa dos bicos. 

É tão bom não me picar. Às vezes gostava de ir passear,ir apanhar sol, ver as crianças a brincar no jardim, tal como antes destes bicos começarem a crescer. Mas não. Não vale a pena tanto sofrimento só para chegar à janela. Assim é menos mau. Não vejo, ou sinto o sol, nem estou com as outras pessoas, mas pelo menos não me pico, não sangro. É tão bom não me picar. 

E se sangro a culpa é minha. Afinal que de tão importante pode justificar que eu me magoe com estes bicos? Eu não sei que eles lá estão? Então porque insiste a minha cabeça em querer levar-me a sítios onde não posso chegar? Só me faz sofrer, só faz com que me pique. A culpa é minha é toda minha. Não me pico se não desejar, se não quiser saber mais, se não quiser viver fora deste corredor. Então já sei o que tenho de fazer na minha vida.

Eu sei que picam, que me ferem, que me fazem sangrar... mas às vezes tenho ganas de correr pelo mais longo corredor que conheço e atirar-me contra eles. Acabaria o sofrimento? Ou será que ficaria incapacitado, a sofrer indefinidamente, com uma vida pior que a que tenho? Não sei. Só sei que se seguir por este carreiro há muito delimitado não vou morrer, nem me vou picar, mas será que vou viver?