15 março 2010

A casa dos bicos

A minha casa tem bicos. Do chão crescem bicos como flores à volta deste carreiro. Das paredes aproximam-se de mim bicos, como bolores. O tecto fá-los descer silenciosamente pelo espaço que existe até à minha cabeça. A minha casa é a casa dos bicos.

Todos os bicos picam e os seus arranhões têm um ardor metálico e cortante na minha carne. Estou ferido. Estou ferido há anos, a minha imagem é uma imagem ténue e grotesca, debilitada do que já fui quando todos estes bicos não me picavam. Faço a minha vida no pequeno corredor onde os bicos não chegam e tornei-me exímio em não lhes tocar. Hoje quase que tenho uma vida normal na minha casa, na casa dos bicos. 

É tão bom não me picar. Às vezes gostava de ir passear,ir apanhar sol, ver as crianças a brincar no jardim, tal como antes destes bicos começarem a crescer. Mas não. Não vale a pena tanto sofrimento só para chegar à janela. Assim é menos mau. Não vejo, ou sinto o sol, nem estou com as outras pessoas, mas pelo menos não me pico, não sangro. É tão bom não me picar. 

E se sangro a culpa é minha. Afinal que de tão importante pode justificar que eu me magoe com estes bicos? Eu não sei que eles lá estão? Então porque insiste a minha cabeça em querer levar-me a sítios onde não posso chegar? Só me faz sofrer, só faz com que me pique. A culpa é minha é toda minha. Não me pico se não desejar, se não quiser saber mais, se não quiser viver fora deste corredor. Então já sei o que tenho de fazer na minha vida.

Eu sei que picam, que me ferem, que me fazem sangrar... mas às vezes tenho ganas de correr pelo mais longo corredor que conheço e atirar-me contra eles. Acabaria o sofrimento? Ou será que ficaria incapacitado, a sofrer indefinidamente, com uma vida pior que a que tenho? Não sei. Só sei que se seguir por este carreiro há muito delimitado não vou morrer, nem me vou picar, mas será que vou viver?

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